A constituição da mulher como um fator cultural e não apenas biológico é o tema dos trechos a seguir, extraídos do primeiro e mais importante livro de filosofia dedicado à condição da mulher. Simone de Beauvoir reflete sobre a produção da masculinidade e da feminilidade, e afirma que a “libertação da mulher” requer que ela se assuma como ser sexuado.
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo. O drama do nascimento, o da desmama desenvolvem-se da mesma maneira para as crianças dos dois sexos [...].
[...] Uma segunda desmama, menos brutal, mais lenta do que a primeira, subtrai o corpo da mãe aos carinhos da criança; mas é principalmente aos meninos que se recusam pouco a pouco beijos e carícias; enquanto à menina, continuam a acariciá-la, permitem-lhe que viva grudada às saias da mãe, no colo do pai que lhe faz festas; vestem-na com roupas macias como beijos, são indulgentes com suas lágrimas e caprichos, penteiam-na com cuidado, divertem-se com seus trejeitos e seus coquetismos: contatos carnais e olhares complacentes protegem-na contra a angústia da solidão. Ao menino, ao contrário, proíbe-se o coquetismo; suas manobras sedutoras, suas comédias aborrecem. “Um homem não pede beijos... um homem não se olha no espelho... Um homem não chora”, dizem-lhe. Querem que ele seja “um homenzinho”; é libertando-se dos adultos que ele conquista o sufrágio deles. Agrada se não demonstra que procura agradar.
Muitos meninos, assustados com a dura independência a que são condenados, almejam então ser meninas; nos tempos em que no início os vestiam como elas, era muitas vezes com lágrimas que abandonavam o vestido pelas calças, e viam cortar-lhes os cachos. Alguns escolhem obstinadamente a feminilidade, o que é uma das maneiras de se orientar para o homossexualismo [...].
[...] O privilégio que o homem detém, e que se faz sentir desde sua infância, está em que sua vocação de ser humano não contraria seu destino de homem. Da assimilação do falo e da transcendência, resulta que seus êxitos sociais ou espirituais lhe dão prestígio viril. Ele não se divide. Ao passo que à mulher, para que realize sua feminilidade, pede-se que se faça objeto e presa, isto é, que renuncie a suas reivindicações de sujeito soberano. É esse conflito que caracteriza singularmente a situação da mulher libertada. Ela se recusa a confinar-se em seu papel de fêmea porque não quer mutilar-se, mas repudiar o sexo seria também uma mutilação. O homem é um ser humano sexuado: a mulher só é um indivíduo completo, e igual ao homem, sendo também um ser sexuado [...].
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 9, 12, 452.
Questões sobre o texto
Por que a mulher foi considerada pelos homens como o Outro? Quais as decorrências culturais e sociais disso?
Em que sentido a libertação da mulher requer que ela se assuma como ser sexuado? Por que recusar-se a isso seria como uma mutilação?
Depois de ler o texto, você acredita que as diferenças emocionais entre homens e mulheres estão ligadas à diferença na educação de filhos e filhas?