Costumamos dizer que a filosofia é grega, por ter nascido nas colônias gregas no século VI a.C. E antes da filosofia, que tipos de pensamentos ocupavam a mente das pessoas?
Vamos primeiro examinar o mito, modo de consciência que predomina nas sociedades tribais e que nas civilizações da Antiguidade ainda exerceu significativa influência. Ao contrário, porém, do que muitos supõem, o mito não desapareceu com o tempo. Está presente até hoje, permeando nossas esperanças e temores, como veremos.
Entre os povos indígenas habitantes das terras brasileiras, encontramos várias versões sobre a origem da noite. Um desses relatos é o dos maué, nativos dos rios Tapajós e Madeira. Segundo eles, no início só havia o dia. Cansados da luz, foram ao encontro da Cobra-Grande, a dona da noite. Ela atendeu ao pedido com a condição de que os indígenas lhe dessem o veneno com que os pequenos animais como aranhas, cobras e escorpiões se protegiam. Em troca, receberam um coco com a recomendação de só abri-lo ao chegarem à maloca. Ao ouvirem ruídos estranhos saindo dele, não resistiram à tentação e assim deixaram escapar antecipadamente a escuridão da noite. Atônitos e perdidos, pisaram nos pequenos bichos, cujas picadas venenosas mataram muitos deles. Desde então, os sobreviventes aprenderam os cuidados que deveriam tomar quando a noite viesse.
De modo semelhante aos maué, os gregos dos tempos homéricos narram o mito de Pandora, a primeira mulher. Em uma das muitas versões desse mito, Zeus enviou um presente aos humanos, mas com a intenção de puni-los por terem recebido o fogo do titã Prometeu, que o roubara dos Céus. Pandora levava consigo uma caixa, que abriu por curiosidade, deixando escapar todos os males que afligem a humanidade. Conseguiu, porém, fechá-la a tempo de reter a esperança, única maneira de suportarmos as dores e os sofrimentos da vida.
O boto, Vicente do Rego Monteiro, 1921. O pintor pernambucano Rego Monteiro é um artista do modernismo brasileiro que recorre aos temas dos mitos indígenas. Nessa aquarela, vemos o contraste entre as raízes arcaicas indígenas e o tratamento contemporâneo da imagem. Observe o traço fino, a delicadeza dos gestos - o índio mais parece um bailarino - e a moça, que se deixa levar sem resistência. Ao fundo, a lua emoldura o casal. Que mito está representado na pintura? O boto é um mamífero cetáceo comum nas águas do Rio Amazonas. Segundo a lenda do Boto-Cor-de-Rosa, à noite ele emerge do rio e se transforma em um belo e irresistível homem que seduz as moças e as engravida. As mães advertem as filhas para o perigo que ele representa. Tal como na proposta de Rego Monteiro, podemos nos perguntar: o que esse mito tem a nos dizer hoje?
Nos dois relatos, percebemos situações aparentemente diversas, mas que se assemelham, pois ambos tratam da origem de algo: entre os indígenas, como surgiu a noite; e entre os gregos, a origem dos males. E trazem como consequências dificuldades que as pessoas devem enfrentar.
A leitura apressada do mito nos leva a compreendê-lo como urna maneira fantasiosa de explicar a realidade, quando esta ainda não foi justificada pela razão. Sob esse enfoque, os mitos seriam lendas, fábulas, crendices e, portanto, um tipo inferior de conhecimento, a ser superado por explicações mais racionais. Tanto é que, na linguagem comum, costuma-se identificar o mito à mentira.
Mythos, em grego, significa "palavra ", "o que se diz", "narrativa". A consciência mítica é predominante em culturas de tradição oral, quando ainda não há escrita.
No entanto, o mito é mais complexo e muito mais expressivo e rico do que supomos quando apenas o tomamos como o relato frio de lendas desligadas do ambiente que as fez surgir.
Não só os povos tribais ou as civilizações antigas elaboram mitos. A consciência mítica persiste em todos os tempos e culturas como componente indissociável da maneira humana de compreender e sobretudo sentir a realidade.
Como processo de compreensão da realidade, o mito não é lenda, pura fantasia, mas verdade. Quando pensamos em verdade, é comum nos referirmos à coerência lógica, garantida pelo rigor da argumentação e pela apresentação de provas. A verdade do mito, porém, resulta de uma intuição compreensiva da realidade, cujas raízes se fundam na emoção e na afetividade. Nesse sentido, antes de interpretar o mundo de maneira argumentativa, o mito expressa o que desejamos ou tememos, como somos atraídos pelas coisas ou como delas nos afastamos.
Não se trata, porém, de qualquer intuição. Para melhor circunscrever o conceito de mito, precisamos de outro componente - o mistério - , pois ele sempre é um enigma a ser decifrado e como tal representa nosso espanto diante do mundo. O mistério é algo que não podemos compreender, por ser inacessível à razão e depender da fé.
Segundo alguns intérpretes, o "falar sobre o mundo" simbolizado pelo mito está impregnado do desejo humano de afugentar a insegurança, os temores e a angústia diante do desconhecido, do perigo e da morte. Para tanto, os relatos míticos se sustentam na crença, na fé em forças superiores que protegem ou ameaçam, recompensam ou castigam.
Entre as comunidades tribais, os mitos constituem um discurso de tal força que se estende por todas as esferas da realidade vivida. Desse modo, o sagrado (ou seja, a relação entre a pessoa e o divino) permeia todos os campos da atividade humana. Por isso, os modelos de construção mítica são de natureza sobrenatural, isto é, recorre-se aos deuses para essa compreensão do real.
Alguns teóricos explicam o mito pela função que desempenha no cotidiano da tribo, garantindo a tradição e a sobrevivência do grupo. Vejamos alguns exemplos:
A origem da agricultura: segundo o mito indígena tupi, a mandioca, alimento básico da tribo, nasce do túmulo de uma criança chamada Mandi; no mito grego, Perséfone é levada por Hades para seu castelo tenebroso, mas, a pedido de sua mãe, Deméter, retoma em certos períodos: esse mito simboliza o trigo enterrado como semente e renascendo como planta.
A fertilidade das mulheres: para os arunta, indígenas australianos, os espíritos dos mortos esperam a hora de renascer e penetram no ventre das mulheres quando elas passam por certos locais.
O caráter mágico das danças e desenhos: quando os homens pré-históricos faziam pinturas nas paredes das cavernas, representando a captura de renas, talvez não pretendessem enfeitá-las, mas agir magicamente, para garantir de antemão o sucesso das caçadas; essa suposição se deve ao fato de que geralmente os desenhos eram feitos nas partes mais escuras da caverna.
Já outros intérpretes da linha psicológica, como Sigmund Freud, fundador da psicanálise, e seu discípulo dissidente Carl Jung, acentuam o caráter existencial e inconsciente do mito, como revelador do sonho, da fantasia, dos desejos mais profundos do ser humano. Por exemplo, ao analisar o mito de Édipo, Freud realça o amor e o ódio inconscientes que permeiam a relação familiar. E Jung se refere ao inconsciente coletivo, que seria encontrável nos grupos e nas pessoas em qualquer época ou lugar.
O mito ainda é uma expressão fundamental do viver humano, o ponto de partida para a compreensão do ser. Em outras palavras, tudo o que pensamos e queremos se situa inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressupostos míticos, cujo sentido existencial serve de base para todo trabalho posterior da razão.
Comecemos pelas histórias em quadrinhos de super-heróis. Elas se fundam no maniqueísmo da luta entre o bem e o mal, polarizando heróis de um lado e bandidos de outro; além disso, a dupla personalidade do personagem principal (pessoa comum e super-herói) atinge em cheio os anseios de cada um de superar a própria inexpressividade e impotência, tornando-se excepcional e poderosa.
Coringa, o inimigo de Batman, segundo seu criador, Bob Kane, em 1940. Nas histórias em quadrinhos destaca-se o confronto mítico entre o bem e o mal.
Esta tela do pintor flamengo Peter Paul Rubens faz menção a Ícaro, personagem mítico.
Os contos de fada retomam os mitos universais da luta contra as forças do mal: a madrasta, o lobo, a bruxa contrapõem-se a figuras frágeis como Branca de Neve, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, João e Maria: quando o bem vence o mal, são apaziguados os temores infantis.
Personalidades como artistas, políticos e esportistas, que a mídia se incumbe de transformar em figuras exemplares, exaltam a imaginação humana ao representarem todo tipo de anseios, como sucesso, poder, liderança, atração sexual. Inúmeros são os exemplos dessas figuras que, por motivos diversos, são consideradas excepcionais - Madonna, Che Guevara, Ayrton Senna - e que às vezes tornam-se fugazes, devido à rapidez da mídia em promovê-las e esquecê-las.
No campo da política, até as mais racionais adesões a partidos políticos e correntes de pensamento supõem esse pano de fundo mítico no qual nos movemos em direção a valores que só posteriormente podem ser explicitados pela razão.
O prevalecimento do maniqueísmo, em certas circunstâncias, traz o risco de preconceitos - eis o lado sombrio de alguns mitos -, devido à tendência em separar de modo simplista as pessoas, grupos ou nacionalidades, como inimigas. Por exemplo, o nazismo de Hitler difundiu-se a partir da ideia da raça ariana como raça pura e desencadeou movimentos de perseguição que culminaram no genocídio de judeus, ciganos, comunistas e homossexuais. Recentemente, diante dos ataques de grupos terroristas da AI Qaeda aos Estados Unidos, ainda há quem generalize o mal a todo povo árabe.
O mito não se reduz a simples lendas, mas faz parte da vida humana desde seus primórdios e ainda persiste no nosso cotidiano como uma das experiências possíveis do existir humano, expressas por meio das crenças, dos temores e desejos que nos mobilizam. No entanto, hoje os mitos não emergem com a mesma força com que se impuseram nas sociedades tribais, porque o exercício da crítica racional nos permite legitimá-Ios ou rejeitá-los quando nos desumanizam.