É comum dizer que os primeiros filósofos surgiram na Grécia Antiga e que, portanto, a filosofia e o pensamento lógico-racional seriam gregos. Essa perspectiva ainda é válida? Os gregos foram o único povo capaz de gerar o pensamento filosófico e científico? Para responder a isso, é preciso observar o contexto histórico e cultural do mundo antigo e entender que o nascimento da filosofia foi um processo de longa duração e cheio de influências.
Na história da filosofia, costuma-se dizer que a filosofia nasce como substituição aos mitos. Assim, cria-se a noção de que os mitos são formas primitivas de pensamento, próprias de povos atrasados, enquanto a filosofia, por sua vez, seria a forma desenvolvida e racional, invenção dos gregos, entendidos como superiores e mais inteligentes.
A consciência mítica, como estudamos anteriormente, é uma forma de explicar o mundo que se baseia na fé e nas narrativas fantásticas contadas e recontadas através das gerações. Ela faz parte da cultura e está relacionada com a visão de mundo de um povo, suas tradições, sua moral. É por meio dessa consciência que ocorre a educação dos jovens para viverem naquela sociedade. Além disso, os mitos, através das ações de deuses, heróis e criaturas sobrenaturais, buscam oferecer explicações e sentido para fenômenos naturais, fenômenos sociais e angústias humanas sobre o desconhecido universo que nos rodeia. Essa forma de consciência estava presente no passado de muitas culturas e permanece viva ainda hoje em muitos contextos. A filosofia, por sua vez, é uma forma de consciência que busca outras formas de explicação, que baseiam-se na experiência, na observação dos fenômenos e na análise lógica das evidências sobre o por quê das coisas.
Em muitas partes do mundo, como Egito, Pérsia, Índia, China e entre os povos ameríndios, houve o desenvolvimento da razão para investigar da natureza e desenvolver tecnologias para a agricultura, o comércio e a engenharia. Portanto, não há como deixar de reconhecer a importância de sábios do mundo antigo como Confúcio e Lao Tsé na China; Gautama Buda na Índia e Zaratustra na Pérsia, além dos avanços da matemática e da escrita entre os Egípcios e da astronomia entre os Maias. No entanto, há um fator que diferencia o conhecimento desenvolvido entre os gregos e aqueles de outras culturas no mesmo período: a vinculação das doutrinas e do conhecimento racional com a religião.
Enquanto em outras culturas as doutrinas filosóficas ainda estavam fortemente ligadas à religião, na Grécia os primeiros filósofos buscaram explicações racionais e lógicas para o mundo ao seu redor sem recorrer ao sobrenatural, passando de uma consciência mítica para a filosofia. Em outras palavras, a filosofia que nascia entre os gregos se afastou do pensamento mágico, mítico e religioso, abandonando a explicação sobrenatural em direção a uma explicação lógica, baseada em observação da natureza e na construção de evidências. Alguns autores chamam essa mudança de "milagre grego", mas é importante entender que não foi um milagre, e sim o resultado de um processo histórico e social que começou muito antes.
É bom ressaltar que a ideia de um "milagre grego" no fundo é racista e eurocêntrica, pois parte do princípio de que o homem grego e ocidental é privilegiado e superior em relação aos homens de outras culturas, que estariam atrasados ou em estados "primitivos". O filósofo Jean Pierre Vernant critica a ideia de "milagre grego":
"[...] nesta perspectiva, o homem grego acha-se assim elevado acima de todos os outros povos, predestinado; nele se encarnou o logos [...]. E, para além da filosofia grega, esta superioridade quase providencial transmite-se a todo o pensamento ocidental, surto do helenismo." (VERNANT, Mito e pensamento entre os gregos: estudo de psicologia histórica, p. 350.)
Essa perspectiva senso comum de que a filosofia é exclusivamente grega oculta um fator importante, sem o qual a filosofia como a conhecemos não teria nascido ali: as trocas culturais entre gregos e outros povos desde o período pré-homérico, cerca de 2000 a.C. Já no século VIII a.C., a Grécia passou por transformações importantes que prepararam o terreno para essa mudança de mentalidade. A invenção da escrita e da moeda, o comércio marítimo, a criação de leis escritas e a fundação das cidades-Estado (póleis) foram fatores-chave nesse processo.
Antes da escrita, a consciência mítica predominava nas culturas de tradição oral. E após sua invenção, em muitas sociedades, a escrita era vista como algo divino e mágico, como no Egito, onde os hieróglifos eram considerados sinais divinos. Os gregos, porém, começaram a dessacralizar a escrita, tornando-a mais acessível e democrática. Aqui temos, então, uma grande diferença, pois nas sociedades que já haviam desenvolvido a escrita, ela era reservada a uma elite sacerdotal para fins religiosos, enquanto entre os gregos foi difundida para o uso comum e prático.
A escrita trouxe consigo a necessidade de maior rigor no pensamento e permitiu que ideias e conhecimentos fossem registradas e debatidas ao longo do tempo, afinal o registro escrito pode ser lido e apropriado no futuro. Além disso, o surgimento da moeda e a ampliação do comércio expandiu os horizontes dos gregos, permitindo o contato com diferentes pensamentos e ideias de outras civilizações. Naquela época, a civilização grega estava se estabelecendo e seu modo de vida era baseado na pesca e no comércio marítimo. Assim, as trocas comerciais marítimas permitiram um contato cultural com povos da região, como por exemplo os egípcios e os povos do oriente.
Com a escrita disseminada e a criação de leis escritas, as antigas regras baseadas na tradição foram substituídas por leis feitas pela convenção dos homens. Essas mudanças criaram uma administração da cidade e expressaram um ideal de igualdade que preparou o terreno para o surgimento da democracia, sobretudo quando pensamos em Atenas. O fator político foi importante, pois a polis, com sua praça pública chamada ágora, se tornou um espaço de debate e discussão dos problemas e interesses coletivos. Na polis democrática, a palavra dos homens passou a ter mais importância do que a palavra mágica dos mitos e dos deuses. Esse ambiente fomentava o conflito, a discussão e a argumentação.
Essas transformações históricas e sociais criaram uma sociedade propícia para a reflexão filosófica e gradualmente abandonaram a tradição dos mitos para resolver problemas, explicar fenômenos e relacionarem-se politicamente. Nesse contexto, os primeiros filósofos, conhecidos como filósofos da natureza (ou filósofos pré-socráticos), surgiram nas colônias gregas da Jônia e da Magna Grécia nos séculos VII e VI a.C. Eles buscaram respostas lógicas e racionais para questões que antes eram atribuídas aos deuses e aos mitos.
Um dos temas mais importantes para esses filósofos era a natureza (physis), que estudavam para entender como ela funcionava. Eles buscavam compreender o tempo, a origem do universo, a organização do cosmo e a essência dos seres. Se antes os mitos explicavam a origem do mundo, agora os filósofos da physis tentavam entender a natureza por ela mesma.
Esses primeiros passos da filosofia na Grécia antiga foram fundamentais para o desenvolvimento do pensamento racional e lógico que conhecemos hoje. A filosofia nasceu em um contexto histórico, material e cultural que permitiu a busca por explicações racionais e lógicas para o mundo, mas o gregos não teriam chegado a esse novo método de conhecimento sem acumular experiências e contatos com outros povos fora do mundo grego.