O texto a seguir é parte de uma conferência de Foucault em 7 de dezembro de 1966 na rádio France-Culture. Nele, o filósofo faz uma relação entre o corpo humano e a utopia, esse lugar que não existe, que pode ser qualquer lugar. A utopia no corpo está nas roupas que usamos, na maquiagem, em máscaras ou tatuagens. Mudamos o corpo, mudamos a nós mesmos, mudamos nossos lugares no mundo.
[...] O corpo é ele mesmo um grande ator utópico, quando se trata de máscaras, da maquiagem e da tatuagem. Mascarar-se, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como poderíamos imaginar, adquirir um outro corpo, simplesmente uma pele mais bonita, mais bem decorada, mais facilmente reconhecível; tatuar-se, maquiar-se, mascarar-se é sem dúvida algo completamente diverso, é fazer o corpo entrar em comunicação com os poderes secretos e as forças invisíveis. A máscara, o desenho tatuado, o produto cosmético depositam no corpo toda uma linguagem: toda uma linguagem enigmática, toda uma linguagem cifrada, secreta, sagrada, que chama sobre esse mesmo corpo a violência do deus, a potência surda do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o cosmético localizam o corpo em outro espaço, eles o fazem entrar em um lugar que não tem um lugar diretamente no mundo, eles fazem desse corpo um fragmento de espaço imaginário que vai se comunicar com o universo das divindades ou com o universo de outrem. Seremos pegos pelos deuses ou seremos pegos pela pessoa que acabamos de seduzir. Em todo caso, a máscara, a tatuagem, o cosmético são operações por meio das quais o corpo é arrancado de seu espaço próprio e projetado em um outro espaço.
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E se sonhamos que a vestimenta sagrada ou profana, religiosa ou civil faz o indivíduo entrar no espaço fechado do religioso ou na rede invisível da sociedade, então vemos que tudo isso que toca o corpo – desenho, cor, diadema, tiara, vestimenta, uniforme – tudo isso faz desabrocharem, sob uma forma sensível e matizada, as utopias seladas no corpo. Mas talvez fosse necessário ir abaixo da roupa, talvez fosse preciso tomar a própria carne, e aí veríamos que, em certos casos, no limite, é o corpo ele mesmo que faz retornar contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contramundo no interior mesmo do espaço a ele reservado. Então, o corpo na sua materialidade, na sua carne, seria como o produto de suas próprias ilusões. O corpo do dançarino não é justamente um corpo dilatado, segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, os possuídos; os possuídos, cujos corpos tornam-se o inferno; os estigmatizados, cujos corpos tornam-se sofrimento, redenção e saúde, paraíso sangrento. Eu estaria maluco, de fato, se acreditasse que o corpo jamais está em outro lugar, que ele está irremediavelmente aqui e que ele se opõe a toda utopia.
Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar, ele é ligado a todos os outros lugares do mundo, e verdadeiramente ele não é senão em outro lugar. Pois é em torno dele que as coisas estão dispostas, é em relação a ele – e em relação a ele como um soberano – que há um acima, um abaixo, uma direita, uma esquerda, um adiante, um atrás, um próximo, um distante. O corpo é o ponto zero do mundo, o lugar em que os caminhos e os lugares vêm se cruzar; o corpo não está em nenhum lugar: ele é no coração do mundo esse pequeno núcleo utópico a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego, pelo poder indefinido das utopias que imagino. Meu corpo é como a Cidade do Sol*, ele não tem um lugar, mas é dele que partem e se distribuem todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.
FOUCAULT, Michel. Le corps utopique, les hétérotopies. Paris: Lignes, 2009. p. 15-18.
Questões sobre o texto
Segundo Foucault, qual é o efeito de intervenções estéticas sobre o corpo, como a maquiagem e a tatuagem?
Como podemos compreender a afirmação de que “o corpo é o ponto zero do mundo”?