Texto 1
A maioria das espécies, incluída a humana, possui um par de cromossomos sexuais ou heterocromossomos, responsável pela diferença entre os sexos. Em geral, as fêmeas apresentam dois cromossomos sexuais idênticos um ao outro (cromossomo X), e os machos têm um cromossomo idêntico ao das fêmeas (X) e outro diferente (Y). Assim, as fêmeas são homogaméticas (XX) e produzem óvulos com um dos cromossomos X; os machos são heterogaméticos (XY) e produzem espermatozoides X e espermatozoides Y.
O sexo é determinado no momento da fecundação. Se o óvulo for fecundado por um espermatozoide X, o embrião originará uma fêmea; se for fecundado por um espermatozoide Y, nascerá um macho. Portanto, a origem do sexo é determinada exclusivamente pelo espermatozoide.
Fonte: LINHARES, Sérgio; GEWANDSZNAJDER. Biologia. São Paulo: Ática, 2012. p. 380.
Texto 2
Limites incertos
Grupo de pesquisa paulista caracteriza 23 disfunções orgânicas do desenvolvimento sexual.
— Maria, você quer ser mulher ou homem?
A médica Berenice Bilharinho Mendonça, ao fazer essa pergunta, buscava uma informação importante para planejar o tratamento de Maria, então com 16 anos, naquele dia usando um vestido florido. Berenice já tinha reparado que Maria olhava constantemente para o chão para que o cabelo comprido encobrisse os pelos de barba do rosto. Os níveis do principal hormônio masculino, a testosterona, eram normais para um homem. Os genitais eram ao mesmo tempo masculinos e femininos, com predomínio do aspecto masculino.
Diante da médica, em uma sala do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo, Maria respondeu de modo evasivo, com voz grave e forte sotaque do interior de Minas Gerais:
— Ah. A senhora é que sabe.
Berenice conta que não soube o que fazer de imediato. Não poderia escolher por Maria. Como lhe parecia claro que Maria não se sentia bem como mulher, ela chamou a equipe com que trabalhava – Walter Bloise, Dorina Epps e Ivo Arnhold. Em conjunto, decidiram fazer o que não estava nos manuais de atendimento a pessoas com distúrbios do desenvolvimento sexual. Sugeriram que Maria morasse em São Paulo por um ano e vivesse como homem para ver com qual sexo se adaptava melhor à vida em sociedade.
Maria vestiu roupas masculinas pela primeira vez, ganhou outro nome – digamos, João –, saiu do hospital com o cabelo cortado e trabalhou em um emprego que a assistente social lhe arrumou. Maria gostou de ser João. No HC, desde aquela época uma referência nacional nessa área, Maria passou por uma cirurgia que corrigiu a ambiguidade dos genitais, tornando-os masculinos. Quando Maria nasceu, a parteira havia comentado que bebês como aquele morriam logo, mas João tem hoje 50 anos e, de acordo com as notícias mais recentes, vive bem no interior de Minas Gerais.
João sempre foi homem, do ponto de vista genético. Suas células contêm um cromossomo X e um Y, como todo homem – as mulheres têm dois cromossomos X –, além de 23 pares de cromossomos não ligados ao sexo. Por causa de uma falha em um gene em cromossomo não sexual, porém, seu organismo produz uma quantidade muito baixa da enzima 5-alfa-redutase tipo 2. Em consequência, seus genitais masculinos não tinham se formado por completo e se apresentavam com um aspecto feminino, o que fez com que fosse registrado como mulher.
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Em um estudo de 2004, o grupo da USP apresentou 14 mutações em oito genes que impedem a produção de hormônios ligados ao desenvolvimento sexual. A médica Ana Claudia Latronico, à frente desse trabalho, associou cada mutação às respectivas manifestações externas, com base na avaliação de quase 400 crianças, adolescentes e adultos de todo o país e de países vizinhos atendidos na USP.
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“Os pais tendem a esconder ou a negar os distúrbios do desenvolvimento sexual dos filhos, porque reconhecer pode ser emocionalmente doloroso, e a maioria dos portadores de distúrbios de desenvolvimento sexuais só chega aqui quando já são adolescentes ou adultos”, diz Berenice. [...]
“Quanto mais cedo possível se fizer o diagnóstico e desfizer a ambiguidade sexual, melhor, de preferência antes dos 2 anos de idade, quando as crianças ainda não estabeleceram as noções de sexo e gênero”, diz a psicóloga Marlene Inácio, que acompanha as pessoas com ambiguidade sexual no HC há 28 anos. [...]
Dar voz aos pais implica o reconhecimento de expectativas frustradas com filhos que morreram ao nascer ou com meninas que chegaram no lugar imaginado para meninos. “Antes de o filho nascer, a mãe imagina o que o bebê vai ser; ele existe primeiro em sua mente”, diz a psicanalista Norma Lottenberg Semer, professora da Universidade Federal de São Paulo e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. “O que os filhos serão, em termos sexuais e psíquicos, em parte reflete as fantasias, os sentimentos e os pensamentos dos pais.”
“As condutas de tratamento são estabelecidas em consenso entre os pais e a equipe multidisciplinar”, diz Berenice. Do diagnóstico, segundo ela, participam endocrinologistas, cirurgiões, clínicos, biólogos, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. “Quando não há consenso entre a orientação médica e o desejo dos pais, o desejo dos pais deve ser respeitado.”
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O diagnóstico para definição do sexo ou da ambiguidade sexual inclui sete itens. Alguns são biológicos, como os níveis de hormônios e as estruturas genitais externas e internas. Outros são subjetivos, como o sexo social – pelo qual um indivíduo é reconhecido por outras pessoas – e a identidade de gênero – se essa mesma pessoa se assume psiquicamente como homem ou como mulher. “A identidade de gênero é ser e ao mesmo tempo sentir-se homem ou mulher”, diz Marlene. [...]
O homossexualismo constitui outro universo distante dos distúrbios biológicos. Nesse caso, a identidade de gênero se mantém: são homens ou mulheres que se aceitam como homens ou mulheres e escolhem outros homens ou mulheres como objetos amorosos. Já nos travestis a identidade de sexo é estável, mas a de gênero é flutuante: os travestis sabem que são homens, mas podem às vezes se comportar como mulheres.
No hospital da USP, só depois do diagnóstico e da escolha do sexo a ser adotado é que a ambiguidade sexual pode ser desfeita, por meio de uma cirurgia de correção da genitália externa masculina ou feminina, seguida de reposição hormonal. “Não queremos apenas tratar e resolver, mas entender as causas de um problema, examinando os dados e a história pessoal de cada paciente, elaborando uma hipótese e, a partir daí, pedindo os exames”, diz Berenice. “Não adianta pedir exames e mais exames sem uma hipótese a ser investigada. Só investigamos os possíveis genes envolvidos em um problema depois de termos em mãos o diagnóstico hormonal. Se não, é caro e inútil.” [...]
Fonte: MENDONÇA, B. B.; ARNHOLD, I. J.; COSTA, e. M. 46,XY disorders of sex development (DSD). Clinical endocrinology. 2009, 70(2):173-87. In: FIORAVANTI, C. Limites incertos. Pesquisa Fapesp, ed. 170, abr. 2010. Disponível em: <http://revistapesquisa.fapesp.br/2010/04/02/limites-incertos/>. Acesso em: 30 dez. 2012.
Questões sobre o texto
Tendo por base o texto 1, explique a determinação do sexo pelo aspecto genético. Depois, responda: existe diferença entre sexo e sexualidade? Comente.
Releia o sexto parágrafo do texto 2. Quais são as implicações pessoais e sociais em ter um nome registrado no gênero feminino, sentir-se homem e apresentar genitais ambíguos?
A Constituição brasileira de 1988 expõe como fundamentos de nosso país, em seu artigo 1º, a cidadania e a dignidade da pessoa, e como objetivos fundamentais, no artigo 3º, promover o bem de todos, sem preconceitos. Além disso, há um Projeto de Lei da Câmara que altera a Lei 7.716/89, contra discriminação e preconceito, incluindo entre os crimes abrangidos por ela a discriminação por gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Se cabe ao ser humano escolher e orientar a sua sexualidade, na sua opinião, por que, ainda hoje, homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais necessitam se perguntar por que são assim e justificar socialmente o seu direito à cidadania?
Leia os trechos a seguir:
"A cultura é responsável pela transformação dos corpos em entidades sexuadas e socializadas, por intermédio de redes de significados que abarcam categorias de gênero, de orientação sexual, de escolha de parceiro."
Heilborn, Maria L. Construção de si, gênero e sexualidade. In. Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 40.
"Se o gênero é um produto histórico, então ele está aberto à mudança histórica. [...] Podemos rearranjar a diferença apenas se contestarmos a dominação. Assim, uma estratégia de recomposição exige um projeto de justiça social."
Connell, Robert. Políticas da masculinidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 2, n. 20, jul-dez, 1995. p. 189, 200.
"A sexualidade tem muito a ver com a capacidade para a liberdade e com os direitos civis e [...] o direito a uma informação adequada é parte daquilo que vincula a sexualidade tanto com o domínio imaginário quanto com o domínio público."
Britzman, Débora. O que é essa coisa chamada amor: identidade homossexual, educação e currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 21, n. 1, jan-jul, 1996. p. 106.
Imagine uma sociedade onde não mais houvesse as classificações “normal” e “anormal”, o preconceito, o racismo e a discriminação. Considerando os trechos que você acabou de ler e aquilo que você observa em seu cotidiano, escreva um pequeno texto descrevendo uma situação vivida por essa sociedade imaginária.