A Europa do século 16 é o cenário do que podemos chamar de início do período moderno: uma série de transformações sociais, econômicas, políticas e filosóficas estavam acontecendo e os europeus estavam deixando pra trás a Idade Média. Esse movimento desfez aos poucos o domínio completo da religião sobre a vida das pessoas, que a partir de então foram adquirindo um novo jeito de entender o mundo, a natureza, a vida em sociedade e suas próprias experiências pessoais. É aqui que vai ganhando força, por exemplo, a ideia de indivíduo. Isto é, é só na modernidade que as pessoas começam a se perceberem como um ser individual e livre. Junto a esse processo, outro acontecimento mudava o entendimento das pessoas sobre o mundo: o homem se tornava o centro do mundo, ocupando um lugar que antes era de Deus. Foi a passagem do teocentrismo para o antropocentrismo.
A modernidade trouxe mudanças em vários setores da vida e no campo do pensamento não poderia ser diferente. Novas ideias apareceram e, desde o período do Renascimento, a filosofia, a arte e a ciência foram renovadas. Galileu, por exemplo, provocou a Revolução Científica e a filosofia e a arte assumiram nova importância com o declínio do pensamento e dos dogmas religiosos.
O Renascimento foi um movimento cultural, econômico e político surgido na Itália do século 14 e que se estendeu até o século 17 por toda a Europa. Inspirado nos valores da Antiguidade Clássica, o Renascimento reformulou a vida medieval e deu início à Idade Moderna. Na imagem, detalhe de O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli (1483).
É claro que essa transição não foi tranquila, mas a sociedade estava se transformando e com ela, a economia. O capitalismo e a classe burguesa já estavam adquirindo cada vez mais poder, ao passo que os nobres cada vez mais perdiam espaço e influência no jogo político. E é nesse ponto, na questão política, que deteremos nossa reflexão aqui.
No século 16, os Estados nacionais vão ganhando forma e ficando mais fortes, mas não havia ainda o sistema político que temos hoje, com eleições, representantes e divisão do poder. Nesse momento, quem governava ainda eram os reis e rainhas que, com o declínio dos senhores feudais, foram concentrando mais poder e instituíram com o tempo as monarquias absolutistas. Isto é, um tipo de governo onde o poder se concentra todo na figura do monarca.
É nesse contexto que surge a ideia de soberania: o fortalecimento do poder central de uma nação através de um Estado que mantém a unidade do território, a independência em relação a outras nações e o controle de sua população. É isso que a gente chama até hoje de Estado Moderno.
No passado, o poder dos reis e rainhas tinha uma forte ligação com a religião. O poder absoluto foi por muito tempo sustentado pela teoria do direito divino dos reis, que basicamente dizia que o rei governava porque esta era a vontade de Deus. Ou seja, o poder real estava baseado na ideia de que os monarcas foram escolhidos por Deus. Por isso, o papel da Igreja era bastante relevante. Mas a modernidade tirou de cena o poder de Deus (teocentrismo) e colocou em seu lugar o poder dos homens (antropocentrismo). Com isso, o argumento político de que “o rei era rei porque era vontade de Deus” já não tinha o mesmo efeito que antes. É aí que surge a necessidade de explicar a política também de um modo mais lógico e racional e, assim, justificar de maneira secular o poder do rei.
Nesse sentido, nomes importantes da filosofia política fizeram contribuições bastante originais, como por exemplo, os filósofos da teoria do contrato social: Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Neste artigo, nos deteremos apenas sobre teoria política de Hobbes e sua obra Leviatã.
Chamamos esses três filósofos de “contratualistas” porque a ideia central de suas teorias políticas é de que a sociedade e o Estado surgiram através de um contrato, de um pacto feito entre os homens e mulheres para viverem juntos. Cada um deles propôs uma teoria diferente, mas todos partiram da ideia de que teria havido um momento antes e um momento depois desse contrato.
Pra eles, antes do contrato e do estado de sociedade, nós vivíamos, hipoteticamente, em um estado de natureza, onde cada individuo vivia livremente por aí e não havia Estado nem leis. Isso quer dizer que cada indivíduo supostamente era responsável por si mesmo, isto é, era dono de si e tinha poderes para viver livremente como quisesse, organizando-se segundo as "leis da natureza".
E aqui surge uma grande questão: se, antes de viverem em sociedade, os humanos eram livres e donos de si, por que eles teriam abandonado essa forma de viver? Por que teriam feito o tal contrato social, abrindo mão da vida livre que levavam antes? Se foi o contrato social que criou o Estado e as leis, isso significa que os homens teriam concordado em perder sua liberdade. Qual a razão dessa decisão?
Nesse ponto, cada um dos filósofos terá uma resposta própria, mas os três buscarão entender e investigar racionalmente a origem do Estado.
Uma das ideias mais interessantes da obra de Thomas Hobbes é como ele entende o estado de natureza e de como esse estado de natureza teria criado a necessidade de um pacto social para criar o Estado.
Para Hobbes, no estado de natureza, o ser humano tem direito a tudo e vive em completa liberdade. Veja esse trecho de sua obra mais conhecida, chamada Leviatã:
"O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e, consequentemente, de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim." (HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 82)
O estado de natureza para Hobbes é um momento em que os humanos eram totalmente livres e podiam fazer o que quisessem, quando quisessem e do jeito que quisessem. Se fosse para assegurar sua vida, isto é, para garantir sua segurança, a ele era permitido fazer o que fosse necessário.
Vamos imaginar esse cenário: homens, mulheres, crianças, idosos, todos ali sem nenhuma lei e sem nenhuma ordem. Todos vivendo felizes e livres, sem pagar impostos ao governo e sem nenhuma vigilância autoritária. Como será que esses humanos viveriam? Será que cooperariam uns com os outros e viveriam em paz? Ou será que esse cenário seria diferente?
Na verdade, o cenário que Hobbes pinta não é nada bom. Isso porque pra ele a natureza humana não é pacífica. Para o filósofo inglês, o homem não é da paz, mas da guerra. Ele acredita que a natureza humana é egoísta e pressupõe que, num momento de escassez de algum recurso, o homem não é diplomático e cooperativo, mas age segundo seus interesses e desejos. Se ele tem fome e encontra alguém que tem comida, usará da força se puder. Se ele tem desejos, não pensará duas vezes em pegar a força aquilo que vai satisfazê-lo.
Cidade na Faixa de Gaza é bombardeada por mísseis de Israel (2024).
Campo de refugiados palestinos em Gaza destruído por Israel (2024).
Bellum omnium contra omnes ou "A guerra de todos contra todos" é o cenário que Thomas Hobbes entende como o estado de natureza. Em sua obra Leviatã, Hobbes conclui que a humanidade, para evitar tal condição, optou por um contrato social, abdicando de seus poderes e liberdades em troca de uma convivência pacífica em sociedade.
Pode ser que venha alguém e use da força para conseguir o que quer, afinal a liberdade nesse estado de natureza é irrestrita e não há lei nem polícia (já que não há Estado).
"A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. […] Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo […] esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. […] Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama de guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”. (HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1974)
Se deixados a si próprios, os interesses egoístas predominam e cada um torna-se um lobo para o outro. Homo homini lúpus, "O homem é o lobo do homem", ele diz. Essa situação é uma situação de medo, de angústia, de insegurança, ninguém pode confiar em ninguém. Não há condições, portanto, de viver bem, de produzir coisas, e assim também não haveria agricultura, indústria, ciência ou filosofia enquanto os humanos vivessem sem segurança.
Esse raciocínio já deixa bem claro onde ele quer chegar. Ele está tentando nos mostrar o porquê de os homens terem criado uma sociedade organizada e um Estado. Mas como, no meio dessa guerra de todos contra todos, do medo e da insegurança poderia nascer uma sociedade? O que os homens precisaram fazer?
E a resposta que ele nos dá é essa:
"[...] renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permitem em relação a si mesmo. (HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 83)
Então é simples: se o estado de natureza é marcado pela liberdade ilimitada de todos e pelo pleno poder de cada um, a solução então é limitar essa liberdade e abrir mão desse poder. Para isso, foi preciso que os seres humanos renunciassem ao seu poder e sua liberdade, se contentando em fazer com o próximo apenas aquilo que fariam consigo mesmos. Isso seria um contrato que estabeleceria um respeito mútuo entre cada um dos membros dessa nova associação.
Mas há ainda uma outra questão: se a renúncia à liberdade só tem sentido se com ela ocorrer também a renúncia ao poder, quem vai liderar e definir os rumos dessa sociedade? Hobbes explica que nessa sociedade recém-criada seria preciso que todo o poder e liberdade renunciados fossem transferidos a uma única pessoa. Esse indivíduo que recebe o poder dos demais é o soberano, o rei, o Estado.
A nova ordem é conquistada então através de um pacto, onde todos abdicam de sua vontade em favor de "um homem ou de uma assembleia de homens, como representantes de suas pessoas". Ou seja, você e os demais abrem mão do seus poderes em nome de um outro indivíduo ou de um grupo de outros indivíduos, que será o soberano e criará o Estado e as leis.
Como ser humano, na visão hobbesiana, não é sociável por natureza, ele será por artifício: o medo e o desejo de paz levaram os indivíduos a fundar um estado social e a autoridade política que vai comandar e definir o que pode e o que não se pode fazer. E pra isso o soberano vai usar todo o poder e liberdade que lhe foi conferido no momento do pacto.
Capa do livro Leviatã, de Thomas Hobbes, publicado em 1651. A frase em latim no topo diz "Non est potestas super terram quae comparetur ei" (Não há poder sobre a Terra que se compare a ele).
Pra Hobbes, o poder do soberano deve ser absoluto, deve ser ilimitado. O soberano, tal qual um Leviatã, terá poder e liberdade para fazer o que bem entender sem ser questionado. A preocupação de Hobbes nesse sentido é com a segurança. A transmissão do poder dos indivíduos ao soberano deve ser total, senão a guerra e as disputas internas podem voltar a acontecer.
Cabe, portanto, ao soberano julgar sobre o bem e o mal, o justo e o injusto; e ninguém pode discordar dele, pois tudo o que o soberano faz é resultado do investimento da autoridade consentida pelos súditos. E, se não há limites para a ação do governante, não é sequer possível ao súdito julgar se o soberano é justo ou injusto, tirano ou não, pois é contraditório dizer que o governante abusa do poder: não há abuso quando o poder é ilimitado.
Com essa ideia que Leviatã de Hobbes trata da organização da sociedade: o homem em “estado natural” desconhece as leis e a Justiça, pois todos têm direito a tudo, o que gera a “guerra de todos contra todos”. A única forma de refrear essa guerra seria realizando o pacto social, quando todos abrem mão de seu direito em nome de um único soberano.
Tal como um Leviatã, monstro mítico poderoso e gigante, o Estado deve ser um monstro poderoso para se fazer respeitado pelos homens, que deve concentrar todo o poder para ordenar a sociedade e, assim, trazer paz e segurança. O poder do Estado, portanto, deve ser exercido pela força, pois só a iminência do castigo pode atemorizar os indivíduos que são egoístas por natureza. "Os pactos sem a espada não são mais que palavras", diz Hobbes.
Na época em que Thomas Hobbes viveu (entre 1588 e 1679), o absolutismo real estava em seu apogeu, mas também enfrentava muitos movimentos de oposição com ideias liberais, o que trazia sempre a perspectiva de superação do governo absolutista por algum outro tipo de governo.
Isso porque na época da fase mercantilista do capitalismo (com as grandes navegações, comércio e colonialismo na América, África e Ásia) o absolutismo foi muito útil, protegeu as indústrias que estavam nascendo na Europa e favoreceu as burguesias nacionais. Mas quando o capitalismo atingiu sua fase comercial, a intervenção do Estado nos negócios começou a atrapalhar, segundo o ponto de vista dessa mesma burguesia, que se voltou contra o sistema absolutista e começou a reivindicar uma economia livre e com menos intervenção do Estado.
Hobbes busca, então, legitimar o poder do Estado de forma secular e racional, garantindo que, investido de poder, o soberano possa prescrever leis, escolher conselheiros, julgar, fazer a guerra e a paz, recompensar e punir.
Sim, é assustador o monstro criado por Hobbes. Ele próprio se pergunta se não seria muito miserável ser súdito diante de um soberano tão poderoso. E ele conclui que nada se compara à condição da insegurança, medo e angústia dos indivíduos sem o Estado ou às misérias da guerra civil.
Mas é bom ressaltar que Hobbes não era um defensor pura e simplesmente do absolutismo real. Na verdade, para ele, o Estado não precisa ser governado por um monarca apenas. Pode ser monárquico, quando só há um governante, mas pode ser também formado por muitos governantes, como uma Assembleia. A questão pra ele é que, sendo monárquico ou governando por um Assembleia, o importante é que o Estado não seja contestado e que seja absoluto em suas decisões. Só assim haverá paz e segurança.